Editorial
A investigação científica como eixo integrador e dinamizador dos processos substantivos nas instituições de ensino superior angolanas
Scientific research as an integrating and dynamic axis of substantive processes in Angolan higher education institutions
A investigação científica é, hoje, mais do que nunca, o coração que impulsiona a vida universitária. Nas Instituições de Ensino Superior (IES) angolanas, essa constatação assume uma relevância estratégica. Ao observarmos os desafios e as potencialidades do nosso contexto educativo, torna-se evidente que a investigação não é apenas uma dimensão isolada, mas o elemento capaz de integrar de forma dinâmica os pilares do ensino, da extensão, da inovação e da própria gestão institucional.
O Ministério do Ensino Superior, Ciência, Tecnologia e Inovação (MESCTI, 2020) tem reiterado a necessidade de consolidar um sistema de ensino superior que se baseie na produção de conhecimento útil, ético e comprometido com o desenvolvimento nacional. Nesta linha, as universidades não devem apenas formar profissionais competentes, mas cidadãos críticos e investigadores comprometidos com a construção de sociedades mais justas e resilientes. A investigação científica, ancorada na realidade das IES angolanas, constitui o eixo articulador entre os processos de ensino-aprendizagem, a formação contínua, a gestão universitária e a extensão comunitária. Neste sentido, importa destacar os seus principais atributos:
O ensino baseado na investigação representa uma viragem de paradigma nos modelos pedagógicos tradicionais. Quando os estudantes são desafiados a investigar, questionar, experimentar e formular hipóteses, não apenas memorizam conteúdos: constroem sentidos, desenvolvem habilidades cognitivas superiores e conectam-se com os problemas reais da sociedade. A aprendizagem torna-se, assim, um processo activo, significativo e transformador.
A utilização da investigação como ferramenta pedagógica permite que o estudante se torne sujeito activo do seu processo formativo. Ao investigar, ele deixa de ser um mero receptor de conteúdos e passa a construir o saber com base na realidade que o cerca. Essa mudança didáctica- metodológica favorece o desenvolvimento do pensamento crítico, da criatividade e do espírito de resolução de problemas.
O professor, neste contexto, deixa de ser um mero transmissor de conhecimentos e passa a actuar como mentor intelectual, orientador científico e mediador de aprendizagens complexas. A sua actuação deve estar sustentada por uma prática reflexiva, alimentada pela actualização permanente e pela produção científica. Isso exige, portanto, o fortalecimento da cultura investigativa entre os docentes, como condição para a excelência académica e para a inovação pedagógica.
Nos últimos anos, temos testemunhado experiências inspiradoras em diversas IES angolanas, nas quais projectos integradores de investigação foram incorporados ao currículo. Neles, os estudantes são convidados a investigar fenómenos sociais, ambientais ou culturais das suas comunidades, produzindo conhecimento ao mesmo tempo em que desenvolvem competências técnicas e humanas. O ensino, quando vinculado à produção científica, torna-se mais relevante, motivador e conectado com os desafios reais da sociedade.
Na perspectiva da formação ao longo da vida, a investigação científica assume uma função estruturante no desenvolvimento pessoal e profissional dos cidadãos, tornando-se a pilar essencial da pós-graduação. As especializações, mestrados e doutoramentos devem estar fundados em metodologias de investigação rigorosas e aplicadas, permitindo que os profissionais avancem na consolidação das suas competências técnicas, éticas e analíticas.
A UNICEF (2022) destaca a importância da investigação no contexto africano como ferramenta para fortalecer sistemas educativos e gerar intervenções mais eficazes, especialmente em áreas vulneráveis. De forma alinhada, o Plano Nacional de Formação de Quadros (PNFQ) aponta, com razão, para a urgência de se formar uma massa crítica de profissionais-investigadores. Esta prioridade não diz respeito apenas à academia, mas a toda a sociedade angolana, que necessita de soluções sustentadas para desafios como a saúde pública, o desemprego juvenil, a diversificação da economia e a segurança alimentar.
Os cursos de pós-graduação devem estar intrinsecamente ligados à produção de conhecimento novo, útil e aplicável. É através da investigação que os profissionais podem repensar práticas, propor melhorias e contribuir activamente para a solução de problemas complexos enfrentados pelo país. Portanto, investir na formação pós-graduada baseada em investigação é um investimento directo na sustentabilidade, soberania e autodeterminação nacional. Ao promovermos uma pós-graduação baseada em investigação aplicada, damos um passo importante para a autonomia intelectual e tecnológica do país.
A extensão universitária, entendida como o diálogo constante entre a academia e a comunidade, ganha profundidade e eficácia quando sustentada por investigação. A partir de diagnósticos participativos, análises contextuais e avaliação de impacto, é possível desenvolver projectos extensionistas que respondam concretamente às necessidades locais, fomentem a cidadania activa e promovam transformações reais.
A universidade que investiga com sentido social é também aquela que mais se aproxima das comunidades. A articulação entre investigação e extensão permite que o conhecimento científico se traduza em acções concretas nos territórios, fortalecendo o compromisso social da educação superior.
Projectos como clínicas comunitárias, observatórios territoriais, oficinas de tecnologias sociais e programas de educação ambiental são alguns exemplos em que a investigação contribui directamente para o empoderamento das populações e a inovação social. Como propõe a UNESCO (2022), as universidades do século XXI devem ser "cívicas", ou seja, comprometidas com os direitos humanos, com a diversidade cultural e com a sustentabilidade planetária. Em Angola, esse compromisso passa por escutar as comunidades, valorizar os saberes tradicionais e construir pontes entre ciência e cidadania, promovendo a interculturalidade e a valorização do património imaterial dos povos. Assim, a universidade deixa de ser uma ilha de saber e torna-se agente catalisador de desenvolvimento territorial, ampliando sua legitimidade e reconhecimento público.
A investigação também tem um papel incontornável na melhoria da gestão institucional. A gestão das IES deve basear-se em evidências sólidas, oriundas de processos sistemáticos de auto-avaliação, análise de dados, monitoramento de indicadores e estudos de impacto. Processos como o planeamento estratégico, o acompanhamento da qualidade e a tomada de decisões precisam ser sustentados por dados fiáveis e estudos científicos.
A partir de investigações internas, as instituições podem compreender melhor os seus desafios - como a evasão, o baixo rendimento académico ou a rotatividade docente - e desenhar estratégias mais eficazes para enfrentá-los. Esse modelo de gestão baseada em evidências é recomendado por organismos internacionais e tem sido adoptado por universidades de referência no continente africano. Em Angola, iniciativas como os observatórios institucionais e os relatórios de auto-avaliação são passos promissores nessa direcção.
As práticas de gestão baseadas em dados favorecem a inovação organizacional e a optimização de recursos, o que é particularmente importante num contexto de restrições orçamentárias e necessidade de maximizar resultados com recursos limitados. Tal abordagem contribui para a construção de uma cultura de qualidade, transparência e responsabilidade institucional. Assim, a ciência deixa de ser um fim em si mesma e passa a orientar o funcionamento quotidiano da universidade.
DESAFIOS DA CIÊNCIA NAS IES ANGOLANAS, CAMINHOS PARA O FUTURO
Neste tempo de profundas transformações, em que Angola busca novos caminhos de crescimento inclusivo e sustentável, a investigação científica emerge como uma prioridade estratégica. Mais do que uma função académica, ela é uma atitude perante o mundo: a atitude de quem pergunta, escuta, analisa e propõe.
As Instituições de Ensino Superior angolanas estão chamadas a protagonizar este novo ciclo. E só o farão com sucesso se colocarem a ciência no centro das suas práticas pedagógicas, curriculares, institucionais e sociais. Que este editorial seja uma chamada à acção, à reflexão e ao compromisso com uma universidade mais viva, mais justa e mais transformadora.
Para que a investigação floresça como prática estruturante, é imperativo que cada IES adopte uma política científica institucional coerente, exequível e alinhada com os marcos legais nacionais. A Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação de Angola (20212030), promovida pelo MESCTI, estabelece objectivos claros: melhorar as infra-estruturas de investigação, criar e consolidar centros de investigação multidisciplinares, valorizar os recursos humanos e fomentar a cooperação interinstitucional.
A promoção de uma cultura de investigação sólida requer, antes de tudo, vontade institucional e políticas consistentes. Cada IES deve construir sua política científica com base em três pilares: condições materiais, incentivos humanos e alinhamento estratégico com os planos de desenvolvimento nacional e local.
Na prática, isso significa investir em bibliotecas actualizadas, laboratórios, acesso a bases de dados e plataformas digitais. Mas também significa valorizar os investigadores, oferecendo tempo para a pesquisa, financiamento e reconhecimento académico. Para falar em ciência sustentável nas IES, é necessário impulsionar a criação de mecanismos concretos, tais como:
Para executar estas acções, deve-se garantir a existência de condições materiais básicas. É igualmente fundamental que se promovam fóruns permanentes de discussão científica. Estes espaços não só fortalecem redes colaborativas, como ampliam a visibilidade da ciência produzida em Angola.
É preciso criar mecanismos que estimulem a constituição de grupos e centros de investigação interdisciplinares, com forte vocação para resolver problemas concretos do país. Esses núcleos podem e devem dialogar com o sector produtivo, com as administrações municipais e com a sociedade civil, colocando o saber académico ao serviço do bem comum.
Ainda que os progressos sejam visíveis, há desafios importantes a superar. A escassez de investigadores doutorados em tempo integral, a fragilidade das redes de cooperação científica, a baixa visibilidade internacional das publicações nacionais e a limitada cultura de financiamento à investigação são obstáculos reais. Superá-los requer um esforço conjunto. O Estado deve continuar a investir na formação de quadros e no fortalecimento institucional. As IES precisam assumir a ciência como eixo da sua missão. E a sociedade civil deve reconhecer e apoiar o papel da investigação no desenvolvimento do país.
Enfrentar esses desafios requer uma acção coordenada entre o Estado, as IES, o sector produtivo e os parceiros internacionais. Como defendem autores como Altbach, Reisberg e Rumbley (2009), a internacionalização, a cooperação interinstitucional e o financiamento sustentável são condições indispensáveis para que as universidades do Sul Global possam participar, de forma justa e soberana, na produção de conhecimento global.
A investigação científica deve ser reconhecida como o elemento unificador e dinamizador dos processos substantivos nas Instituições de Ensino Superior em Angola. Ela fortalece o ensino, qualifica a extensão, melhora a gestão e gera impacto social. Representa, por isso, não apenas uma função entre outras, mas a essência da missão universitária.
A consolidação de uma cultura de investigação robusta, ética e comprometida com o bem comum é uma responsabilidade colectiva. Requer vontade política, investimento contínuo, valorização dos investigadores, apoio institucional e engajamento da sociedade. Conforme afirmou a UNESCO no seu relatório "Reimagining our futures together: a new social contract for education" (2021), "a educação superior e a ciência devem caminhar juntas para moldar futuros mais justos, pacíficos e sustentáveis". Neste momento histórico, em que Angola se projecta para um novo ciclo de desenvolvimento, a ciência e a investigação não são luxos ou actividades periféricas. São, de facto, a base sobre a qual se erguerá uma nação mais próspera, resiliente e inclusiva.
Referências Bibliográficas
Altbach, P. G., Reisberg, L., & Rumbley, L. E. (2009). Trends in Global Higher Education: Tracking an Academic Revolution. UNESCO.
MESCTI Ministério do Ensino Superior, Ciência, Tecnologia e Inovação. (2021). Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação 20212030.
MESCTI. (2023). Plano de Desenvolvimento Nacional para o Ensino Superior 20232027.
UNESCO. (2021). Reimagining our futures together: A new social contract for education. Paris: UNESCO.
UNESCO. (2022). Open Science Recommendation. Paris: UNESCO.
UNICEF. (2022). Transforming Education in Africa through Research and Innovation. New York: United Nations Children's Fund.
Juan Silvio Cabrera Albert
Instituto Gregório Semedo
https://orcid.org/0000-0001-5276-4123
juan.silvio@igs.edu.ao
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